PODER DE POLÍCIA a “torto e a direito”: Uma análise crítica da inclusão das Guardas Municipais e dos Agentes de Trânsito no SISTEMA DE SEGURANÇA PÚBLICA
A SEGURANÇA PÚBLICA figura - em todas as pesquisas que mensuram a preocupação da população brasileira -, ao lado da corrupção, como um dos principais problemas do cotidiano das famílias. Nesse plano, a proposta recente de Emenda Constitucional que busca enquadrar as Guardas Municipais e os Agentes de Trânsito no rol de legitimados para exercer funções típicas de segurança pública representa um movimento político-jurídico que, embora popularmente celebrado como solução imediata para a sensação (real) de insegurança, se apresenta em flagrante dissonância com os preceitos constitucionais e as normas infraconstitucionais que estruturam o sistema brasileiro de segurança estatal.
Para além da (mera) retórica demagógica, a incorporação indiscriminada desses agentes num cenário em que lhes são adjudicados poderes típicos de polícia — originalmente conferidos, de forma exclusiva, às polícias estaduais — revela, no mínimo, três graves inconsistências: (i) uma afronta ao texto constitucional e à legislação ordinária que disciplinam a hierarquia e a divisão de competências entre as forças de segurança; (ii) uma subestimação das exigências de preparação técnico-operacional, bem como dos instrumentos de controle externo; (iii) um incentivo ao corporativismo ampliado, capaz de fragilizar ainda mais a coordenação e a eficiência do combate ao crime organizado, que continuará a demandar estruturas profissionais especializadas.
1. A inconstitucionalidade latente: atribuição legal e hierarquia federativa.
Analisando a ideia - no âmbito estritamente legal -, temos que nossa Constituição Federal, em seu Art. 144, caput, salienta que a segurança é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, e é exercida através de diversos órgãos. Este artigo define as principais forças policiais do Brasil, incluindo a Polícia Federal, Rodoviária Federal, Ferroviária Federal, Polícias Civis, Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, indicando, adiante que a tarefa das guardas municipais foi pensada “para proteção dos bens, serviços e instalações públicas”; em seguida (inciso V), delimita sua atuação quanto ao “amparo do sistema de segurança, no âmbito de sua competência”.
Assim, ficou desde sempre assentado no quadro federativo brasileiro que a atividade de policiamento ostensivo e repressão da criminalidade — a rigor, o exercício do “poder de polícia repressiva” — é atividade típica das Polícias Militares e Civis, sob o comando dos Estados-membros.
Não obstante, para atender a grita da população, pretende-se alterar a Carta Maior para inserir as Guardas Municipais e os Agentes de Trânsito no conceito de corporações responsáveis pela “preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”.
Tal arsenal semântico contraria frontalmente a distribuição de competências estabelecida no referido dispositivo constitucional, na medida em que confunde atribuição de “referência” (inicialmente, o escopo legal de proteção mais estreito e específico) com competência plena e irrestrita de polícia repressiva.
Significa, em última análise, usurpar um domínio reservado ao ente estadual sem a devida modificação do pacto federativo ou a revisão dos marcos legais que cercam as atribuições das Guardas Municipais (Lei nº 13.022/2014) e dos Agentes de Trânsito (Lei nº 9.503/1997 – CTB).
Cabe lembrar que, ao editar a Lei nº 13.022/2014, o legislador federal consignou expressamente, em seu art. 6º, as hipóteses em que as Guardas Municipais podem atuar, limitando-se, outrossim, ao “ordenamento do trânsito, à proteção de bens, serviços e instalações municipais e ao apoio a atividades das Polícias Militares e Civis”.
O mesmo espectro de atividades restritivas de proteção ao patrimônio público e de auxílio às forças policiais — sem habilitação para o exercício de prisões em flagrante por crimes comuns ou de investigação criminal autônoma — vale também para os Agentes de Trânsito, cuja competência, nos termos do CTB, abrange exclusivamente a fiscalização das normas de circulação e comportamento no sistema viário.
Seja por desídia legislativa, seja por cálculo político, a PEC em debate ocupa-se de redigir, às pressas, um texto que sacrifica a rigidez federativa em favor de um “solucionismo populista” para a criminalidade.
No entanto, práticas congêneres já deram ensejo a sucessivas arguições de inconstitucionalidade: o Supremo Tribunal Federal, em decisões recentes, somente admitiu atuação ostensiva das Guardas Municipais em contexto de convênios com Polícias Militares, resguardando, assim, a prevalência do comando unificado estadual. Desconsiderar tais precedentes equivale a um retrocesso inaceitável, que se ancora em meros expedientes políticos, em detrimento do ordenamento jurídico.
2. Capacitação e controle: riscos de uma delegação acrítica de poderes.
Ainda que se admitisse — hipotética e equivocadamente — a pertinência de conferir às Guardas Municipais e aos Agentes de Trânsito prerrogativas idênticas às das polícias estaduais, tal desiderato não poderia se efetivar sem observância rigorosa de três condicionantes estruturais: (i) formação técnico-profissional especializada; (ii) adoção de protocolos operacionais respaldados por corpo doutrinal; (iii) fortalecimento de mecanismos de controle externo.
2.1. Formação técnico-profissional
A missão primordial de qualquer agente de segurança pública reside na harmonização entre eficiência repressiva e respeito irrestrito aos direitos fundamentais. A mera fixação legal da proteção do patrimônio público não supre a imersão em disciplinas jurídicas, psicossociais, de investigação criminal e de policiamento comunitário.
Ao abrir mão de currículos de formação que contemplem conteúdos como Direito Constitucional, Direito Penal, Processo Penal e técnicas de mediação de conflitos, estará se entregando arma e autoridade a servidores sem a devida temperança jurídica e técnica.
O resultado, via de regra, pode ser a escalada de violações de direitos civis (prisões arbitrárias, uso excessivo da força, discriminação de populações vulneráveis), com efeito corrosivo para a legitimidade estatal e o exercício do monopólio legítimo da violência.
2.2. Protocolos operacionais e instrumentos de apoio
O policiamento ostensivo e o enfrentamento a delitos graves exigem, necessariamente, padronização de rotinas de patrulha, uso de equipamentos de comunicação integrada, câmeras corporais, gestão de inteligência criminal e articulação com outras corporações (Delegacias de Polícia, Promotorias de Justiça, Defensorias Públicas).
Trata-se de um aparato sistêmico cujo planejamento pressupõe orçamento dedicado, assessoria jurídica permanente e interoperabilidade tecnológica. Sem isso, a convocação de Guardas Municipais e Agentes de Trânsito para ações de natureza repressiva significará, na prática, “poder de polícia a esmo”: agentes espalhados em viaturas sem integração de dados, sem protocolos para abordagem, sem critérios objetivos para uso progressivo de força e sem coordenação com as unidades de investigação.
Resta indiscutível, assim, que o inferior nível de preparo e ausência de doutrina consolidada elevarão exponencialmente o risco de conflitos diretos entre corporações (como já ocorre entre as polícias Civil e Militar), ensejando vazios operacionais em regiões periféricas e maior propensão a abusos.
2.3. Controle externo.
Internamente, Guar¬das Municipais e Agentes de Trânsito respondem ao Prefeito ou ao Secretário Municipal competente, o que lhes confere estreita proximidade ao Poder Executivo local. Tal característica, longe de ser irrelevante, põe em xeque a imparcialidade necessária ao exercício de atos que podem culminar em restrição de liberdade ou em intervenção agressiva nas comunidades.
Sem a adequada supervisão do Ministério Público, sem corregedorias independentes e sem ouvidorias com poder de investigação e recomendação, abre-se caminho para a perpetuação de “guerrilhas municipais” em que eventuais casos de abuso ficam à mercê da conveniência política local. Ao contrário das polícias estaduais, que já dispõem de comissões de direitos humanos, corregedorias equipadas e corpos de promotoria especializados em segurança pública, as estruturas municipais carecem de arcabouço institucional mínimo para prevenir e apurar, de modo independente, condutas ilícitas ou antijurídicas.
3. O corporativismo em ascensão e o desvio de foco: reflexos na segurança pública.
É preciso, ainda, refletir sobre o caráter eminentemente corporativista que permeia a concessão de status de “força de segurança” a Guardas Municipais e Agentes de Trânsito. Em terceira instância, provocam-se dois danos correlatos: (i) multidão de entes públicos disputando fatias do Fundo Nacional de Segurança Pública, cujo destinatário natural deveria ser a estrutura já provada de combate ao crime organizado; (ii) diluição de recursos e esforços em esferas sobrepostas, sem ganhos efetivos em redução de índices criminais.
3.1. Disputa pelo Fundo Nacional de Segurança Pública
O acesso aos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública, instituído pela Lei nº 13.756/2018, é visto, por muitos gestores municipais, como cabedal adicional para custear servidores, equipamentos e gratificações.
Dessa forma, a transformação das Guardas Municipais e dos Agentes de Trânsito em corporações dotadas de “poder de polícia” representa um pleito financeiro dissimulado: ao argumento da “proteção do cidadão”, soma-se o interesse em garantir verbas oriundas do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) e de convênios de combate ao tráfico e à violência urbana.
No entanto, essa transferência de recursos tende a reforçar a fragmentação: municípios convergem para disputas orçamentárias, em vez de investir no aprimoramento das polícias já qualificadas para lidar com organizações criminosas.
3.2. Dispersão de responsabilidades e enfraquecimento das forças estaduais
Ao legitimar o “quase-policiamento” municipal, abre-se caminho para que prefeituras adotem agendas próprias de segurança, desarticuladas dos planos de segurança pública formulados pelas Secretarias Estaduais. Isso não significa, ao contrário do que se alega, aproximação ao cidadão: implica, sim, na perda de sinergia entre investigação judicial e repressão.
O resultado prático pode ser a criação de “zonas de impunidade municipal” — municípios onde a Guarda Local atua de forma autônoma, mas sem acesso a bases de dados criminais integradas, negligenciando diligências investigativas de maior porte.
Enquanto isso, as Polícias Militares e Civis correm o risco de ter seus quadros e orçamentos paulatinamente esvaziados, na medida em que recursos federais migram em direção às corporações municipais recém-legitimadas.
4. Conclusão: potencial retrocesso e necessidade de debate qualificado.
O avanço da PEC que procura incluir Guardas Municipais e Agentes de Trânsito no sistema de segurança pública — atribuindo-lhes poderes de polícia — não pode ser celebrado como “avanço da segurança”, mas deve ser encarado como sintoma de um debate empobrecido e eleitoralmente oportunista. Ao passo que se gasta esforço institucional para turbinar o rol de agentes com atribuições repressivas, a criminalidade organizada segue estruturando-se em âmbito interestadual e transnacional, distante de meras rondas municipais.
Para reverter a grave percepção de insegurança — que, em larga medida, se alimenta de notícias sensacionalistas e de falta de planejamento — é imperioso voltar o foco para um pacto federativo coerente, que fortaleça as polícias estaduais com investimento em inteligência, em cooperação entre entes federados e em formação contínua de profissionais, bem como em mecanismos robustos de acompanhamento dessas ações (Ministério Público, corregedorias, comissões de Direitos Humanos).
A mera ampliação constitucional do espectro de “quem pode portar arma” ou “quem pode efetuar prisões” não produzirá, a médio prazo, melhoria concreta nos índices de criminalidade; pelo contrário, corre-se o risco de intensificar conflitos institucionais, diluir recursos escassos e expor o cidadão à insegurança jurídica e ao arbítrio.
Em suma, ao conceder "poder de polícia a torto e a direito" a Guardas Municipais e Agentes de Trânsito, o legislador emenda o texto constitucional para atender a pressões políticas, mas empobrece o sistema de segurança pública.
A resposta eficaz aos desafios criminais pressupõe respeito à hierarquia federativa, delimitação clara de competências e aperfeiçoamento das instituições já existentes — e não a criação de competidores de ocasião, desprovidos do mínimo arcabouço técnico-operacional e de controle externo imprescindível para o convívio democrático e para a proteção dos direitos fundamentais. Na contramão desse desejo populista, urge resgatar a essência da Constituição: atribuir a cada ente federado o exercício de suas funções nos limites claros que o próprio pacto federativo estabeleceu.
A verdadeira prioridade, portanto, está em investir na qualificação e na integração das forças policiais competentes, e não em distribuir poderes de polícia a esmo, sem critério, em detrimento do interesse público e da segurança jurídica.
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