MEMÓRIAS: “Burrou a deretora”

Na década de 1980 - quando nasci -, até meados da década de 1990, do que guardo na memória, no município de Tutóia raríssimos professores e profissionais da Educação tinham curso superior. A maioria dos professores tinha formação primária e ou secundária (de 4ª a 8ª séries), o que nos dias atuais equivalem de 5º ao 9º Ano do Ensino Fundamental e poucos o “Magistério” (Ensino Médio Normal). Pois bem, quem tivesse essa formação poderia ser contratado para lecionar. Por vezes, quem possuía a formação até a 4ª série, podia lecionar até este ano de ensino. 


Desta feita, no povoado Bezerro, dona Célia*, era a diretora, zeladora, merendeira, professora da escola e agente de saúde (guardava um caixa-maleta com um kit de primeiros socorros distribuída pelos agentes da SUCAM). A sala de aula funcionava na sala de sua residência, uma casa de paredes de barro com cobertura de palha da palmeira de buriti. A sala tinha uma mesa de tamanho mediano com uma “cadeira de pau” em cada uma das extremidades dos lados maiores do móvel com uma tábua ou mesmo uma das peças do tear (instrumento utilizado para fabricação artesanal de redes de fibra de palmeiras ou de fios de algodão) sustentados por duas cadeiras: era a improvisação de uma bancada maior para acomodar os alunos. Carteiras escolares? Não se tinha. Funcionava o multisseriado. Crianças de 6 anos até garotos com 15 anos ou mais. Nem se falava em distorção idade-série.


Ali se ensinava o básico. Não se tinha tanta divisão de disciplinas. Tomar a lição (fazer a leitura de um texto) e fazer contas (resolver problemas simples das quatro operações de matemática) era o principal. Não recordo de se ter vários livros. Tinha a “Cartilha”, um livro dos anos iniciais e nas séries seguintes um livro em volume único com divisões em “Estudos Sociais”, Português e Matemática (para esta havia a Tabuada como complemento obrigatório), se havia outras não recordo. 


Pois bem, dona Célia além de assumir múltiplas funções na escola, tinha que cuidar de uma “réca” de filhos e do marido, um farrista.  


O marido da professora tinha uma quitanda e quando este estava na roça ou mesmo na farra, ela assumia o ofício. Imaginem só o quanto era sofrido dar conta de tantas ocupações. Rara eram as vezes que não chorava escondida dos filhos e de todos por carregar tamanho fardo. Uma guerreira. Superou. É um exemplo de mãe.


Na quitanda se vendia secos e molhados (especialmente gêneros da cesta básica) e uma boa tiquira azul (bebida feita da mandioca). A azulzinha era por demais apreciada pelo velho Xexéu** (Luís de Jesus Lima), irmão do marido da professora e seu compadre. 


Xexéu era uma figura, quando não estava com o “bico melado de pinga” (expressão que significa que tinha tomado umas doses de tiquira) pouco se comunicava. Mas, quando “melava o bico” se transformava, era um tagarela, um ser cômico. 


Dona Célia era professora leiga, tinha na época apenas a formação da 4ª série. Porém, num universo em que a regra era a maioria absoluta analfabeta no povoado, quem tinha essa formação era considerado letrado. 


Xexéu não sabia nem assinar o nome, mas era formado na escola da vida. Morava com o irmão – o Santana***, e a cunhada, e, para eles trabalhava, executando tarefas diversas, especialmente fazendo carvão vegetal e cuidando de adubar com folhas secas colhidas do cajual, o bananal no brejo (plantio de bananeiras à margem do riacho Bezerro no sítio que complementava a renda da família). Às 5h da manhã já estava de pé e chamando a dona da casa para lhe dar o primeiro “trago” do dia, uma dose – um copo americano cheio - de tiquira, antes mesmo do café. E começava a labuta. Dona Célia atendia, mas não gostava porque sabia que no final do dia a embriaguez estava certa. Todos os dias se repetia a mesma cena. 


Vez por outra, quando, por volta do meio dia, família reunida na farinhada na casa de forno, se aproximando do almoço, ela recusava a atendê-lo, tentando evitar que se embriagasse e exigindo que ele viesse almoçar, travavam um bate-bocas cômico. Xexéu dizia muitas lorotas e por vezes umas que ninguém entendia. Se virava para a professora e perguntava se ela sabia a resposta, com a resposta negativa ou quando dizia algo fora do contexto, para risada geral da turma, ele sentenciava:

- Óia, tá vendo aí? Burrou a deretora! 




Texto: Elivaldo Ramos, 21.11.2021. 

Fotos: Arquivo Elivaldo Ramos. 

*Maria Célia Cerejo Ramos, nascida em 21 de agosto de 1948, é minha mãe. Foi nomeada professora no ano de 1983, no governo do prefeito Merval Melo. Concluiu o Ensino Médio Normal no ano de 1999, na escola Santa Maria, no governo do prefeito Egídio Júnior. A Secretaria de Educação era gerenciada pelo professor Agostinho Barbosa Neto, que fez convênio com essa escola para tirar do estado “leigo” dezenas de professores tutoienses. Dona Célia, serviu o município de Tutóia como professora até o ano de sua aposentadoria, 2017. Atualmente, com 73 anos, reside no bairro Comum. Teve treze filhos (quatro falecidos ainda na infância).  

** Xexéu (in memoriam), meu tio, irmão do meu pai. Carrego na lembrança frases dele me aconselhando. 

*** Santana (in memoriam), meu pai. Seu nome completo, Joaquim Santana de Lima. Era um boêmio, mas, um homem respeitado e conhecido de muitos.  



 

Eu e Xexéu no quintal de nossa casa no povoado Bezerro, década de 2000. No brejo, próximo do bananal.


 

Minha mãe “tirando linho de buriti” em nossa casa no povoado Bezerro na década de 2000. 


Farinhada na casa de forno. Ano 2000. 

 

Meu pai (senhor sem camisa). No intervalo da farinhada na casa de forno. Ano 2000.


Xexéu, Célia e Márcia (minha irmã). Ano 2000.


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